Ilha de Ideias

sexta-feira, abril 08, 2005

Tema - Droga



Trabalho realizado no âmbito da cadeira de Seminário de Escrita Criativa

Hugo tinha todas as qualidades para ser um bom rapaz, mas não conseguiu resolver os problemas e dificuldades com os quais a vida o presenteou. Tudo começou quando tinha 14 anos. Todos os dias na escola, assim que sentia aquela enorme vontade de fumar uma "ganza", afastava-se dos seus colegas de turma e ia para trás do pavilhão, o local mais calmo e seguro. Desde os 12 anos que fumava tabaco mas numa das festas da escola experimentou a "ganza" e não conseguiu parar.
Chamavam-lhe Marado, não por estar sempre marado com a síndrome da abstinência, mas por ser mesmo louco dos cornos .
Hugo sempre teve alguns problemas familiares. Nada que não se resolvesse. Quando tinha apenas cinco anos, os seus pais separaram-se. A partir daí foi morar com os avós maternos até aos 22 anos. Os avós e a restante família, nunca lhe deram o amor e carinho que precisava, nomeadamente enquanto era criança. A única pessoa que o amava independentemente das sucessivas asneiras que fazia, era Maria - sua mãe. O amor que tinha pelo filho era notável. Não se devia aos laços de sangue que os uniam, mas ao facto de sentir que, além dela, mais ninguém o podia ver.
Todas as vezes que entrava em casa, os avós confrontavam-no. Em vez de o apoiarem, a única coisa que faziam era insultá-lo com palavras assustadoras que nem pareciam que vinham da boca de velhotes.
O consumo aumentou de dia para dia, o dinheiro que a sua mãe lhe dava já não era suficiente para sustentar o vício. Começou nas "ganzas" e acabou no que há de pior no mundo da droga: a heroína. A primeira vez que experimentou foi com o seu grande amigo João, num edifício ainda em construção. Nem quis acreditar na sensação que sentira após o seu primeiro chuto.
João agarrou no braço do Marado e fez-lhe assomar uma veia no braço magro e branco como cinza.
- Queres que eu te chute? - pergunta ele.
Ele diz que sim com a cabeça.
O João começa por meter uma bola de algodão na colher e soprar-lhe para cima. Depois puxa mais ou menos cinco mililitros (ml) através da agulha para dentro da câmara da seringa. Conseguiu dilatar uma veia azul que parecia quase a rebentar no seu braço. Perfurou-lhe a carne e injectou um coche de produto devagarinho, antes de puxar algum sangue de volta para dentro da seringa. Os lábios de Hugo estremeceram e ele deitou-lhe um olhar suplicante, que durou alguns segundos. João fez uma cara horrorosa, de réptil maligno, no momento em que despachou o cocktail para o cérebro do amigo.
Hugo inclinou a cabeça para trás, fechou os olhos, abriu a boca, e soltou um gemido orgásmico. Nos olhos de João havia agora inocência e imenso deslumbramento: a expressão de uma criança que acorda no dia de Natal e vê um montão de presentes embrulhados debaixo da árvore.
- Isto deixa a milhas qualquer coisa do mundo. - disse Hugo, com o ar mais sério possível. Depois deste chuto quero ter muitos mais e se possível iguais ou melhores que este. Isto é que é vida!
Assim que chegou a casa, devorou toda a comida que tinha à sua frente. Maria nunca tinha visto o seu filho naquele estado. Foi para o quarto a pensar no momento que tinha acabado de presenciar.
Hugo frequentou o lado obscuro da vida, as sensações intensas e o prazer imediato na heroína, durante dois anos. Conseguiu empurrar o seu grande amigo Diogo, que nada tinha a ver com este mundo. Certo dia, convidou-o a ir até à casa de João, que era o mais experiente e também o fornecedor do material necessário para o magnífico chuto.
Era a primeira vez de Diogo. Levaram séculos a encontrar uma veia decente. Diogo não tinha as "canalizações" tão perto da superfície, como a maior parte da malta. Quando conseguiu, saboreou o "flash".
Hugo tinha razão. Pega-se no melhor dos orgasmos, multiplica-se a sensação por vinte, e mesmo assim ainda fica a milhas de distância do prazer que isto dá. Os meus ossos secos e prestes a estalar são acalmados pelas carícias ternas da minha linda heroína. A Terra põe-se a girar, e não pára mais.
Hugo passava os dias a mandar os chutos possíveis e impossíveis. Chegou a roubar tudo o que tinha de valioso em casa da sua avó para vender. Todo o dinheiro que arranjava, tinha um destino certo: a droga.
Até que num certo dia, estava sentado em frente ao jardim da igreja com a sua habitual cara de ressaca. Ia a passar uma senhora com uma certa idade que o olhou e disse:
- A vida custa a todos. Já sofri tanto nesta vida que o menino não queira saber.
Hugo olhou para a senhora com aquela cara de quem não lhe tinha perguntado nada. E ela continuou:
- Sei que não tem nada a ver com isso e vejo na sua cara que é isso que me quer dizer. Mas deixe-me falar: preciso de fazer ver a um jovem como você, que vale a pena viver, independentemente das partidas que a vida nos prega. Comecei a trabalhar quando tinha apenas oito anos, na fábrica de mel ali mesmo no fim desta rua. Desde que o meu pai faleceu tive que ajudar a minha mãe a sustentar os meus seis irmãos. Não tive alternativa, talvez por ser a mais velha. Não sei. Quando fiz 16 anos casei-me com o grande amor da minha vida que, passados 12 anos, faleceu num acidente de trabalho. Tenho quatro filhos e nove netos, que são a minha alegria de viver. Queria aproveitar o crescimento dos meus netos, mas já sei que não posso.
Foi aí que Hugo levantou a cabeça, fixando o olhar na senhora e perguntou-lhe:
-Porquê?
- Tenho um cancro nos pulmões e só me deram um mês de vida. Sempre aproveitei os meus dias como se fossem os últimos, mas a partir do momento em que soube desta fatalidade, faço-o a dobrar.
Ele não sabia o que dizer. Agarrou-lhe na mão e disse:
- Não faça caso do que os médicos dizem. Sabe que mais? Eles não passam de uma cambada de sapateiros.
A senhora não disse mais nada, porque conseguiu sentir, mais uma vez, que ninguém acreditava no que ela dizia.
Alguns dias depois, na "casa de chuto", Hugo abriu o Jornal e deu de caras com a foto da velhota. E disse alto e em bom som:
- Eu não acredito nesta porcaria, eu não acredito!
Saiu a correr e foi directamente para a igreja. Nunca tinha entrado em nenhuma e naquele dia, naquele preciso momento, sentiu uma forte necessidade de conhecer a casa de Deus, como dizia a sua avó. Começou a pensar em tudo o que a senhora lhe tinha dito e a partir daí, sentiu uma enorme vontade de deixar o mundo da droga de vez.
Quando chegou a casa, foi directamente para o colo da sua mãe e chorou sem cessar. Só pediu que o ajudasse e que não fizesse perguntas.
Começou o tratamento no UNIAD (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas) e, passados alguns dias, conseguiu perceber a veracidade das palavras daquela simples mulher. O período de recuperação, naquela sala de tortura foi algo insuportável. De repente, sentia frio. A única luz que via era a que vinha da televisão. Estava a dar um programa qualquer mas só via a preto e branco, na sua cabeça não existiam cores. Sentia-se congelado, mas qualquer movimento fazia-lhe mais frio; de cada vez que se mexia, apercebia-se que não havia nada a fazer, nada mesmo.
Passados seis meses de recuperação, Hugo não quis saber mais de droga nenhuma. Conseguiu trabalho numa empresa de contabilidade, onde se apaixonou por uma das suas colegas de trabalho e viveu uma relação nunca antes imaginável.
Toda a falta de esperança que tinha enquanto vivia no mundo da droga foi superada pela sua força de viver.